O texto a seguir é uma tradução e transcrição do episódio de podcast “Humberto Maturana (1928-2021): La revolución reflexiva” feito pelo canal “All You Need is Lab”, disponibilizado pelo Spotify em maio de 2021 no seguinte link: https://open.spotify.com/episode/1ZZtN7T704ATHS7E2IjICe?si=c82648c82e164bbf. O acesso foi feito em 12 de maio de 2022.
Ivan Rimassa: Faz exatamente 10 dias que All you need is lab conversou com Humberto Maturana. O biólogo e filósofo faleceu hoje. Ele recebeu o prêmio nacional de ciências e nos deixou aos 92 anos. Convido vocês a escutar esta conversa inédita (…) com o propósito da publicação do seu último livro com Ximena Dávila: “La Revolucion Reflexiva”, que também participou da conversa. Esta é a penúltima entrevista que (Humberto) deu na sua vida. É uma das mentes mais influentes a nível nacional e internacional.
Ivan Rimassa: Bom, para começar falando sobre o livro, farei a pergunta mais geral, que tem a ver com o título. Ao terminar o texto de vocês, percebi que houve uma ressignificação do conceito revolução: a “revolução reflexiva”, porque se nós falamos de revolução talvez o que nos venha a priori seja um feito como uma revolução social; talvez usemos palavras como revolta, por exemplo, mas no livro vocês usam de outra forma. Como vocês abordaram esta ressignificação do conceito revolução?
Humberto Maturana: Mudar a orientação da reflexão em cento e oitenta graus ou mais. Ou seja, assumindo que não podemos continuar refletindo de uma única maneira como fazíamos antes. Entendendo que geramos um modo de viver de pobreza, de discriminação, ainda que isso não seja aparente. Não que isso já não fosse visível, mas não era aparente, para o próprio viver até pouco antes ou quando já começava a pandemia, com manifestações populares, ou digamos, públicas, sobre uma queixa. E as queixas são sempre muito interessantes porque nos dizem onde o que está sendo feito não está bom. Então isso nos levou a revirar o nosso mundo e nesse revirar nos demos conta de que temos que mudar o olhar, a orientação do olhar, mudar os fundamentos das nossas perguntas, o modo de respondê-las, etc. É isto o que significa, no fundo, isto de revolução reflexiva.
Ximena Dávila: Eu acho, também, que isso começou com a matrística. Isso começou no ano de 1998, 2000, quando eu disse a Humberto que havia me dado conta de que toda dor e sofrimento era de origem cultural. Como (…) humana é epistemológica; epistemológica é de onde conhecemos, vemos e decidimos o mundo. Então, quando me dei conta de que toda dor é de origem cultural (…) comecei a entender que tem a ver com a necessidade de mudar este substrato epistemológico a partir do qual fazemos o que fazemos. E Humberto havia feito isso, no laboratório, quando mudou a pergunta de “ser” para a pergunta pelo “fazer”. Então eu, neste momento, quis sair (…) para mudar a cultura, ou seja, queria fazer uma revolução naquele momento! (…) Eu queria convidar a pensar, neste sentido revolucionário, de onde parte a matrística, em como fazemos o que fazemos, porque nós estamos convidando a uma nova forma de pensar, a uma nova forma de pensar o mundo, um novo modo de fazer as coisas.
Ivan Rimassa: Ximena, queria justamente entrar no grande conceito desenvolvido do capítulo mais adiante no livro “somos frente de onda”, que está falando em formas de pensar. Como se muda a forma de pensar para não seguir fazendo as mesmas coisas, ou seja, voltar a como era antes da pandemia, o estado social para que estas revoluções não tenham sido em vão; a importância dos mestres na aula, da formação dos professores. Entendi que vocês disseram também que a educação é uma transformação também na convivência, mas digamos que, na prática, para os que nos escutam, como se pode mudar o modo de pensar? E não seguir fazendo as mesmas coisas?
Ximena Dávila: O modo de pensar muda quando eu penso o pensar que estou pensando e as consequências do meu pensar. Se continuamos pensando da mesma maneira, se continuamos pensando em políticas da mesma maneira, se continuamos pensando como pensamos…Podemos ver as mudanças climáticas. Porque isso não começou ontem, Ivan. Isso começou muito antes do seu pai, sua mãe e seu avô nascerem. Por isso tem a ver com epistemologia, tem a ver com como pensamos o mundo, e como se transforma isso numa nova forma de nos relacionarmos. E entender como operamos como seres vivos e seres humanos, e entendendo que não há uma realidade independente do operar do observador. Ou seja quando eu digo que o professor é responsável, o sistema é responsável… não! Sou eu! Onde eu estou nisso? É mudar, é um roteiro psíquico, vamos colocar nesses termos. E como se faz?
Ivan Rimassa: Como um roteiro de computador, digamos?
Ximena Dávila: Um roteiro psíquico, eu chamo. Como operamos como seres vivos, como seres humanos? Porque na experiência não distinguimos entre ilusão e percepção. Quais são as consequências disso no nosso viver cotidiano? É um sistema pré-determinado em nossa estrutura. É um ato biológico no qual não posso diferenciar o que os outros escutam do que eu digo, no qual eu não informo nada a ninguém, no qual só posso disparar um processo determinado no qual há escuta. Eu não tenho ideia do que o outro está escutando e do que estou iniciando, só estou disparando um determinado processo. Então, quando nós vamos à aula e vemos como os professores estão ensinando os meninos… nós estamos ensinando, informando algo a eles? Ou estamos gerando uma relação? Onde ocorrem as coisas? Onde ocorre a conduta? Onde ocorre a linguagem? Onde ocorre a emoção? Na relação! Não ocorrem no cérebro. Este reducionismo da neurociência de que tudo ocorre no cérebro… não! Não que no cérebro não ocorra nada, mas nem tudo ocorre no cérebro. As coisas ocorrem na relação.
Humberto Maturana: O viver ocorre na relação. Portanto todos os fenômenos que tem a ver com a realização do viver da pessoa ocorrem na relação. É claro que o cérebro está aí, está participando. Mas os fenômenos das relações ocorrem na relação. A conversação acontece nesse encontro dos outros com você. O seu cérebro, e o meu, e o de Ximena, o de cada um, ainda que entenda o que entende, é interessante como vai se transformando no conviver. Na medida em que nos respeitamos, e nos escutamos para ir entendendo de onde o outro está dizendo o que está dizendo. Se não entendo de onde você diz, de onde você pensa, ou o que é válido, eu não entendo. E tudo isso começa, no fundo são diferentes histórias, mas tudo isso começou há 20 mil anos! Faz 20 anos do encontro que tive com Ximena. Quando veio conversar comigo, me disse: “Doutor, fiz uma descoberta. As pessoas que vêm me consultar, no meu serviço de conselheira profissional familiar, me mostram que toda a dor pela qual se pede ajuda relacional é de origem cultural”. Então ela me disse algo que tem a ver com o que eu escuto, mas o que escuto não é independente da história que já tínhamos juntos. Mas, ela me mostrou algo que, para mim, é notável: Há uma unidade entre o biológico e o cultural.
Ivan Rimassa: No capítulo “o fazer do cientista” vocês dizem: “Consideramos um erro dizer que a ciência e a tecnologia buscam o progresso como um valor em si mesmo”. “O motivo de vida do ser humano é ser inteligente”. “Não podemos presumir que o trabalho do cientista é só aumentar o conhecimento.” Vocês acham que a comunidade científica esqueceu que é parte de um todo? (…) O que vocês pensam sobre isso, a ideia desenvolvida no capítulo “o fazer do cientista”?
Humberto Maturana: Historicamente nós, os seres humanos, não nos confrontamos com a questão de como conhecemos esse mundo que está aí, fora de nós.(…) Em toda a história filosófica e biológica refletimos sobre como é, mas acontece que descobrimos, no momento em que começamos a explicar como que poderíamos distinguir algo externo a nós, que, de fato, não podemos distinguir. O que fazemos surge do que fazemos e não podemos dizer que já existia antes. O saber é um fazer. Se você diz que sabe alguma coisa, e uma pessoa te pergunta como você sabe, você sempre responde com um fazer: “Olha, se você faz isso e isso, acontece tal coisa”. Então o saber é um fazer. Note que é importante dar-se conta disto, porque quando se pergunta o que é realidade, ela aparece com o que fazemos. Então perceber que somos os geradores do que surge do que fazemos é completamente diferente de pensar de que estamos descobrindo um mundo que já existe. Mas quando queremos mostrar como vemos o mundo que está aí, que não podemos vê-lo, porque esse mundo não nos diz como é.
Ivan Rimassa: Uma das principais bases do conhecimento da ciência é o método científico. Muitos consideram o mero ato de questioná-lo quase um sacrilégio, mas na matrística o método científico explica a coerência do que sabemos, e isto aparece no livro, com a coerência do que fazemos.
Humberto Maturana: Exatamente.
Ivan Rimassa: Então, o que acontece com o método científico? Nesse ato de se questionar, nesta revolução, poderia haver inclusive um questionamento à própria base do todo conhecimento? No caso do método científico, seria algo que poderíamos considerar insignificante, talvez? Poderia este ser um princípio dogmático?
Humberto Maturana: Não. Teoricamente o cientista procede assim. Procura uma experiência e quer tentar entender como acontece. Então ele a descreve e percebe que outra coisa teria que acontecer, se fosse assim. Ele deduz isto. E desta dedução lhe ocorrem também outras razões que deveriam produzir outra experiência. Então ele está o tempo todo explicando a coerência do que faz com a coerência do que faz com seu viver. Com a diferença que, metafisicamente ou que tipologicamente nós cientistas temos pensado. Por algum momento na minha história, pensei que havia um mundo externo que eu teria que conhecer. Que esse mundo externo nos diria como era. Mas quando estudei como esse mundo externo me diria como era, me dei conta que não poderia me dizer, porque tudo que ele poderia fazer era precipitar em mim algo pré-determinado no meu fazer.
Então aconteceu uma mudança epistemológica. Como a Senhora Ximena fundamentou: já não é o que está, e sim o que fazemos, que é diferente. Se você olhar, verá que toda ciência se funda em coerências de seres. Mas com o cuidado de que seja impecável a observação dos fazeres que se fazem sejam dedutíveis do que se observa no fazer.
Ivan Rimassa: Ximena, você ia dizer algo?
Ximena Dávila: Sim, eu ia dizer que está claro que é uma grande mudança. Porque além de mudar toda a epistemologia, tem também toda uma filosofia que a contém. A pergunta da filosofia até os dias de hoje é a pergunta pelo ser. O ser das coisas e, bem, poderíamos dizer que Heidegger disse algo mais ou menos como “a flor floresce para mim”, certo?
Ivan Rimassa: Sim.
Ximena Dávila: Mas havia uma flor que ele dizia que era independente dele e que não florescia.
Humberto Maturana: Para ele.
Ximena Dávila: Para ele. E aqui não há flor nenhuma flor independente que floresça para mim. Não sei se estou me fazendo entender. Então a questão tradicional da filosofia seguiu para pergunta pelo ser. E o ser é inacessível. O ser é um ser sendo. Então, quando mudamos a pergunta do ser pelo fazer, tudo muda. Tudo muda! Então, quando Humberto se perguntou: “O que é o ser vivo que morre”? E um dia um aluno disse a ele: “Bem, se você diz, hoje, que os seres vivos surgiram há 3,8 bilhões de anos, como você pode me dizer, hoje…”
Humberto Maturana: Naturalmente, você tem que saber o que é um ser vivo hoje.
Ximena Dávila: Claro, você tem que saber agora o que é um ser vivo para que me diga hoje…
Humberto Maturana: …que eles surgiram há 7,8 bilhões de anos. E eu comecei a procurar o que é um ser vivo. Acontece que não tínhamos ideia do que era um ser vivo.
Ximena Dávila: Naquela época se dizia que o ser vivo era todo o que movia, então a história lhe dirá que havia muitos. Mas quando Humberto se pergunta o que é um ser vivo, ele não queria explicar, ele não queria descrever um ser vivo independente por si mesmo, não queria descrever um ser vivo. Porque é possível descrever um ser vivo. Ele queria dizer: se eu fizer isso, isso e isso, resultará num ser vivo. O que é diferente.
Humberto Maturana: Claro, ou o que deve suceder para que resulte um ser vivo. Então passei a me dedicar a responder a essa pergunta. E eu consegui, em 1961.
Ximena Dávila: Que foi a autopoiese molecular. E o que diz a autopoiese molecular? Que criamos a nós mesmos. Que somos sistemas fechados. Nós nos geramos a nós mesmos.
Humberto Maturana: Somos sistemas moleculares que se conectam, se transformam e mudam, e o resultado é sempre sistemas moleculares que se conectam, se transformam e mudam. E eles produzem a si mesmos.
Ivan Rimassa: Humberto, Ximena, não nos resta muito tempo e eu queria encerrar com uma reflexão sobre a morte. No livro, vocês dizem que o crescimento exponencial da população é a ameaça mais complexa de todas para nossa espécie e, bem, além das mudanças climáticas e de que que não se deve regulamentar a taxa de natalidade há várias reflexões que se depreende desta afirmação. E a pandemia obriga-nos justamente a refletir sobre a morte, já que agora a temos presente no nosso dia-a-dia. Que efeito vocês pensam que trará, a longo prazo, a mortalidade causada por esta pandemia em nossa sociedade? Esta morte que temos tido tão a flor da pele há mais de um ano?
Ximena Dávila: Eu acho que vai deixar de ser um tabu, e vamos poder começar a falar sobre isso como sempre deveria ter sido. Porque no momento em que há vida, há morte, ou seja, são lados da mesma moeda. Por isso que, quando alguém diz que é a favor da eutanásia usam palavras estranhas como “a favor.” (…) Não cabe dizer que se é a favor de nada, e sim que se trata de uma pessoa. Poderia haver uma licença, inclusive. Se não estou em condições de viver uma vida digna, e não quero estar conectadas à máquinas, prefiro uma morte, como se diz…
Humberto Maturana: Digna.
Ximena Dávila: Digna, talvez. Sim. E o mesmo acontece com o aborto. Quando se pergunta, as palavras que se usam são “a favor” ou “contra”… não! É claro que ninguém quer fazer um aborto. (…) A mulher decide por ela, pelas circunstâncias da vida que tem, decide por ela, num determinado número de meses, que é o prazo limite, por não prosseguir com a gravidez. Então a morte é um tema que antes não estava sendo discutido. Hoje em dia, vemos na Índia, com esta quantidade de pessoas, temos visto forças (…), então temos que falar sobre a morte. Porque é parte da vida, não é algo que surgiu ontem. Então o mundo começa a se sensibilizar com questões que estavam escondidas, das quais não se falava. O mundo começa a se sensibilizar. Por isso eu dizia que estávamos cegos e insensíveis. Vamos conversar sobre situações que são parte da vida e que antes eram tabus. Eu acredito que a pandemia nos sacudiu super forte nas nossas crenças e valores. Na nossa conduta ética, também.
Humberto Maturana: Sim, e mostrou como somos responsáveis pelo mundo no qual vivemos, porque todas as coisas que estão acontecendo tem a ver com como temos vivido….
Ivan Rimassa: …e nos relacionando…
Humberto Maturana: …todo este tempo, claro. Então o mundo já estava passando por isso. É o que aparece com o que nós fazemos. A realidade é o que aparece com o que nós fazemos. Se fazemos as coisa de uma maneira, aparece tal coisa. Se agimos de outra maneira, aparece outra coisa. Isso nos faz responsáveis. Nós, os seres humanos somos responsáveis (…) pelo planeta, por Gaia, pela biosfera. Antes pensávamos: “Não, se tudo isso acontecer, e nós observarmos, nós vamos…” Não! Ao escolher um fazer escolhemos um curso de variação que gera consequências na biosfera, em Gaia, (…) em todo o sistema, como base efetivamente, como se vê aparentemente com as mudanças climáticas. De todo o sistema de manutenção que possibilita o desenvolvimento, que faz possível a realização dos seres vivos.
Ximena Dávila: E também podemos nos questionar sobre a seleção natural. O mais apto se adapta? Ou o apto se adapta?
Humberto Maturana: Claro, quando Darwin propõe, e esta não é uma crítica a Darwin, é uma referência ao momento histórico no qual ele está pensando, ele se dá conta de que tem que haver sobrevida diferenciada. E a sua pergunta é: “O que faz com que a sobrevida seja diferenciada”? Isso tem a ver com as condições de vida, já que nem todos os organismos encontram as condições adequadas para conservar o seu viver. Então, os que estão mais aptos para o que está aí, sobrevivem. Mas o erro está em que os seres vivos não se adaptam; existem. O ser vivo somente existe quando se encontra com seu nicho ecológico, que se encontra com ele. O nicho ecológico aparece com o ser vivo. E me interessa esta coerência condicional entre o ser vivo e o âmbito de existência que o torna possível, e vai viver! E se (…) tangencia seu viver, não se adaptando a um meio, não há um nicho passivo em parte alguma. A não ser o nicho que surgirá e que vai se conservando na realização do seu viver.
Ivan Rimassa: Bom, Ximena, muito obrigado, Humberto também. De novo, Ximena Dávila, epistemóloga de vocação, e Humberto Maturana, prêmio nacional de ciências, ambos fundadores do Instituto Matrística e coautores do livro “La Revolución Reflexiva”, e vocês o podem encontrar em busca livre e nas redes sociais, que são @Matríztica no facebook, twitter e instagram. Obrigado por conversar com raiosat.
Ximena Dávila: Obrigada a vocês pela conversa.
Humberto Maturana: Obrigada a você pela gentileza.
Ivan Rimassa: Abraço.