O espaço como linguagem
Em sua obra “Construir, pensar, habitar”, Martin Heidegger parte da linguagem para pensar os conceitos de espaço, lugar e morar. Heidegger defende que é partir da linguagem que se forma a essência do ser, uma vez que a linguagem determina o ser e o pensar; dessa forma, Heidegger demonstra que a linguagem é o acesso para a investigação da essência das coisas. O mesmo ocorre com o morar: ele funda o ser e, portanto, pode-se dizer que o pensamento também se forma através da casa e do lugar.
Se o lugar forma o ser, pode-se dizer que o ser também forma o lugar. Ao reagirmos ao ambiente que nos cerca, podemos transformá-lo. E podemos fazê-lo de diversas formas, inclusive criando meios, instrumentos e ferramentas. A partir deste comportamento, construímos e somos construídos.
A este domínio de ações mútuas podemos chamar comunicação, já que esta relação de interação, de mútua perturbação, define uma linguagem. Assim, os elementos inseridos no lugar de modo concreto podem ser estudados como um fenômeno comunicacional, e desta forma pode-se dizer que a informação a ser estudada é o próprio espaço. Em resumo:
O espaço é um domínio linguístico, que compreende a ideia de informação como seus elementos, e ao mesmo tempo uma concreta organização espacial do ambiente (…) Das simples interações com o espaço até ao desenvolvimento de uma linguagem, o espaço e seus habitantes podem ser estudados através de seus elementos concretos como um fenômeno comunicacional onde a informação é mesmo o espaço.
O ser e o espaço
Os conceitos de Heidegger tem diversos pontos de contato com a obra dos cientistas Humberto Maturana e Francisco Varela. Embora a obra destes autores seja originalmente voltada para a Biologia, pode-se dizer que os conceitos abordados já ultrapassam em muito o campo desta disciplina.
Em Biologia do Conhecimento, Maturana e Varela afirmam que o ser vivo é um organismo capaz de produzir a si próprio, definido por eles como um sistema autopoiético. O ser vivo é um sistema que interage com o meio em que se insere, através de mútuas perturbações, mas na autopoiese a organização deste sistema se mantém, já que o ser vivo é autônomo; porém sempre deve haver uma congruência estrutural entre o ser vivo e meio, que é o que Maturana e Varela definiram como determinismo estrutural. O ser vivo e o meio se modificam de forma congruente entre si: “Somos como somos em congruência com nosso meio e nosso meio é o como é em congruência conosco.” (MATURANA e VARELA, ano).
Pode-se dizer então que homem e espaço, de certa forma, se co-pertencem porque produzem um ao outro.
Espaços e espacialização
O conceito de espaço está associado às interações sociais. Conforme Milton Santos (1978 apud SAQUET, 2008), “O espaço é um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações que estão acontecendo e manifestam-se através de processos e funções”.
Um exemplo deste processo é a interação entre as formas sociais e as formas físicas, definido como espacialização.
As espacializações são as expressões, no espaço, das interações entre eventos (formas sociais) e as coisas (formas físicas). Portanto, as espacializações são o modo como se ordenam intencionalmente os objetos, os marcos e sinais, ou seja, dispostos de forma tal a expressar intenções. Um meio ambiente construído é o universo das espacializações que são configuradas sob um cenário cultural da comunidade que nela habita.
O espaço é um sistema indissociável de sistemas de objetos e ações, em que a instância social é uma expressão concreta e histórica. (SAQUET e SILVA, 2008). O espaço arquitetural é a concreção do espaço existencial, ou seja, é a manifestação concreta da interação entre os eventos e as coisas, ou as formas sociais e as formas físicas.
Lugar como equipamento
Em Ser e Tempo, Heidegger propõe três conceitos, ou estruturas, relacionados ao modo do ser se relacionar com o mundo.
Há o modo cotidiano de existir, que é a principal forma de nos relacionarmos com o mundo. É aquela na qual a realidade nos aparece como pronta e feita, habitual e familiar (present-at-hand, ou seja, disponível à mão). Nós já partimos de uma compreensão prévia sobre o que estes entes são, e somente por isso podemos nos relacionar com eles.
Quando estes instrumentos encontram-se indisponíveis, podem ocorrer perturbações nestes relacionamentos; é a segunda forma.
A terceira maneira é quando consideramos a finalidade do instrumento. A essência de um instrumento é sempre a de ser para (ready-to-use, estar pronto para uso). Assim, a essência do instrumento está diretamente relacionada com o ser que lhe dá significação, uma vez que ele lhe revela a finalidade. É no uso que o caráter da instrumentalidade se revela.
Dessa forma, é possível concluir que, para Heidegger, homem e mundo são conceitos melhor compreendidos dentro da relação que têm um com o outro.
As qualidades do lugar
O espaço tem lugares que podem ser arrumados, ou seja, o espaço pode ser ordenado, organizado, o que é diferente do mero estar simplesmente presente. Assim, para Heidegger, homem e o espaço se pertencem.
Dessa forma, é no espaço, que se concretiza a existência do ser. Os sujeitos se apropriam do espaço, e irão transformá-lo. Lugar é um espaço que foi qualificado pelos sujeitos, e esta qualificação é feita através da inserção de componentes, pelos sujeitos, no espaço. A inserção destes componentes, ou qualidades, no espaço, cria fenômenos associados que se manifestam nos elementos arquitetônicos do lugar. Entretanto, esta qualificação pode gerar conflitos entre o uso (pretendido) e a forma física que de fato é o lugar. Estes conflitos afetam a habitabilidade e, consequentemente, suas características, e como materializações, podem ser identificados e lidos.
Ver Imagem 1: Relações entre dimensões fenomenológicas, fenômenos existenciais e elementos arquitetônicos
A partir da apropriação do lugar, lhe serão dados significados. Por exemplo, a criação de um limite, cria um território e, a partir disso, uma relação de interior e exterior. Agora, o espaço pode ser controlado, criando-se a noção de dentro e fora, e também a diferenciação entre os dois. Assim, poderá ser afirmada a identidade do grupo que ocupa aquele território; é o grupo que o controla e mantém.
Território e territorialidade são conceitos que implicam na presença de relações de poder e de vivência dentro do espaço. As relações de poder são políticas ou simbólicas. A territorialidade é criada quando uma área é mantida com a vocação de proteção, dentro de um limite estabelecido. Consequentemente, surge uma força de identidade dentro do grupo,
um sentimento de unidade, e de pertencimento:
A qualidade territorial é relacionada ao humano quando a apropriação do espaço faz aparecer marcas territoriais para identificar os limites. Dessa forma, a identidade é assegurada, e o comportamento territorial pode definir, no interior do território, códigos territoriais tais como roupas, gestos, ações no espaço, etc. A interação social, regida por um grupo dominante, dá um senso de pertinência ao território a partir do uso dos códigos territoriais, permite a vigilância e facilita a criação de uma comunicação. Essa por sua vez permite uma fácil identificação de invasão das fronteiras ou intrusão espiã. O comportamento individual e a identidade coletiva são claramente expressos no interior do território. A invasão pode ser física ou não, desdobrando a proteção em diversos artifícios. O território utiliza a visibilidade da área interior para vigiar e detectar os intrusos.
Conforme SAQUET (2006), “o território é um produto socioespacial, de relações sociais que são econômicas, políticas e culturais e de ligações, de redes internas e externas que envolvem a natureza. Por esta via o espaço físico entra nas relações e nas estruturas sociais.”
É o controle seletivo do acesso a uma pessoa ou a um grupo. Pode ser descrita como o controle das relações e eventos interpessoais, permitindo que se tome parte da vida social, controlando (barrando ou permitindo) que a rede de relações se estabeleça com a coletividade. Níveis desejáveis de privacidade podem ser estabelecidos por meios espaciais e temporais, verbais, culturais e comportamentais. Os padrões de privacidade dentro de uma cultura podem variar com o tempo, e códigos comportamentais podem auxiliar o equilíbrio da privacidade num grupo.
É o conjunto de valores, crenças e ideias cuja significação se apoia nos elementos espaciais do lugar e que contribuem para o sentimento de que aquele lugar é único mas que possa ser compartilhada a vida social no seu interior. A identidade promove a diferenciação e a distinção individual mas coletivamente oferece elementos que os indivíduos reconhecem como padrões de comportamento no espaço, padrões que integram o indivíduo no grupo. Assim, identidade envolve o domínio individual e público. A preocupação com a preservação de uma identidade do lugar é mostrada pelos esforços no sentido de manter e revelar a unicidade dos elementos locais. Além da intenção prévia que diz o quê expressar, envolve a consciência da unicidade desses elementos e o esforço de manutenção desses elementos. A identidade de um lugar pode ser expressa indiretamente pelo comportamento territorial que caracteriza as pessoas daquele lugar.
Esta qualidade se relaciona com todos aqueles aspectos que tornam o lugar um lugar agradável e confortável. Apesar de tanger uma dimensão subjetiva, pode ser entendida como os esforços de preservar certos padrões de conforto. Para observar essa qualidade, precisamos atentar para como as pessoas se apropriam e mantêm o lugar, cuidam dele, limpando-o e preservando-o.
Lugar como habitação
O espaço abriga lugares dentro de si. O espaço é simplesmente uma posição com limites, entendendo-se limites não como uma borda, mas onde se origina a essência de algo. Mas quais circunstâncias fazem com que o espaço se torne um lugar?
Heidegger, no ensaio intitulado Construir, Habitar, Pensar (Bauen, Wohnen, Denken) dá o exemplo de uma ponte. Do espaço, um rio e suas margens, surge o lugar, a ponte, que dá ao espaço circunstância. A ponte cria um caminho, além de relações entre as margens, o céu e as pessoas. E estes espaços também se relacionam entre si. Portanto, ao construir a ponte, é fundado o espaço, é criado um lugar.
Conforme dito, Heidegger afirma que a linguagem é o acesso para a investigação da essência das coisas. E a partir daí ele se propõe a investigar a essência dos conceitos habitar/morar. Heidegger questiona o que é morar, e até que ponto morar se associa a construir:
A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir “buan”, significa habitar. Diz: permanecer, morar. O significado próprio do verbo bauen (construir), a saber, perdeu-se. (…) Os verbos buri, büren, beuren, beuron significam todos eles o habitar, as estâncias e circunstâncias do habitar. Sem dúvida, a antiga palavra buan não diz apenas que construir é propriamente habitar, mas também nos acerca como devemos pensar o habitar que aí se nomeia. (HEIDEGGER, 2012 apud ADUQUE, 2008)
Construir, em alemão é bauen, e para Heidegger esse conceito tem seu significado no cultivar, no cuidar. Deste modo, pode-se dizer que construir significa participar de uma cultura. E construímos porque habitamos. Habitar, então, é ser e estar. É resguardar a essência do próprio homem:
Construir significa originariamente habitar. Quando a palavra bauen, construir, ainda fala de maneira originária diz, ao mesmo tempo, que amplitude alcança o vigor essencial do habitar. Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã “bin”, eu sou nas conjugações ich bin, du bist, eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede. O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que pertence “bin” “sou”, responde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre esta terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. (HEIDEGGER, 2012 apud ADUQUE, 2008).
Mesmo assim, conforme Heidegger, nem todo local construído é uma habitação. Os edifícios que não são locais específicos de moradia podem estar “no domínio de nossa moradia”, como uma ponte ou um hangar. O caminhoneiro se sente em casa na autopista, porque ela serve ao seu habitar, ainda que não habite nela. Habitar é ordenar, organizar o espaço, influenciando-o e aceitando que por ele, somos influenciados. Um exemplo deste fenômeno são os locais públicos. Pode-se considerá-los como extensão da nossa capacidade de habitar o mundo, visto que os modificamos e por eles somos modificados.
Portanto, pode-se dizer que, a referência dos seres humanos com o lugar é o habitar. O lugar, habitado, acolhe uma circunstância. É o modo pelo qual o ser constrói o mundo.
Fontes Consultadas
ADUQUE, Marilene. Habitando entre o céu e a terra: Em torno à simplicidade do habitar. Disponível em: <https://doity.com.br/media/doity/submissoes/artigo-7a7f9579bd0700434d38b859837e4689bbecb48b-arquivo.pdf>. Acesso em 02 dez. 2022.
FUÃO, Fernando. Construir, morar, pensar: Uma releitura de ‘contruir, habitar, pensar’ (bauen, wohnen, denken) de Martin Heidegger. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica/article/view/12052>. Acesso em 08 dez. 2022.
GOITIA, Fernando Chueca. Breve História do Urbanismo. Lisboa, Editorial Presença, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Bauen, Wohnen, Denken (1951) conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954.Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Disponível em <https://filosofiaepatrimonio.files.wordpress.com/2017/03/martin-heidegger-construir-habitar-pensar.pdf>. Acesso em 07 dez. 2022.
SAQUET, Marcos Aurelio. SILVA, Sueli Santos. MIilton Santos: concepções de geografia, espaço e território. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/geouerj/article/viewFile/1389/1179> Acesso em 04 dez. 2022.
PISETTA, Élcio Elvis. O Manual e a Manualidade. Disponível em <https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/372/705>. Acesso em 07 dez. 2022.
SOUZA, Renato Cesar F. de. PACHECO, Fernando. Avaliação Ambiental. 2022. Notas de aula. Não paginado.