A evolução da humanidade é permeada por técnicas e tecnologias como parte de sua existência. Segundo Freud (1996), em sua publicação O mal-estar na civilização, datada de 1930, o autor argumenta que:
“Através de cada instrumento, o homem recria seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência motora coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode empregar em qualquer direção; graças aos navios e aos aviões, nem a água nem o ar podem impedir seus movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através do telescópio, vê a longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de visibilidade estabelecidos pela estrutura de sua retina. Na câmera fotográfica, criou um instrumento que retém as impressões visuais fugidias, assim como um disco de gramofone retém as auditivas, igualmente fugidias; ambas são, no fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é, sua memória. Com o auxílio do telefone, pode escutar a distâncias que seriam respeitadas como inatingíveis mesmo num conto de fadas. A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constituiu um substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade.” (FREUD, 1996, p. 97).
Assim, pode-se dizer que corpo, técnica e tecnologia estão intimamente interconectados, visto que estes podem ser considerados como complementares para a corporeidade do ser humano. Isto porque o corpo se apresenta como o primeiro instrumento do homem e a tecnicidade como condição básica de sua corporeidade (FROSH, 2019), em que, sob o domínio perceptivo, pode-se dizer que o corpo é o lugar de morada e comunicação e o mundo um propiciador de experiências (OLIVEIRA, 2002).
Essa relação intrínseca, corpo-técnica-tecnologia, direciona para a construção de uma natureza techno-cultural, em que as “[…] condições humanas de existência se fundem na experiência por meio da formação de mundos”[1] (FROSH, 2019, p. 4). Consequentemente, percebe-se o corpo como mediador de informações, implicando diretamente na dinâmica experiencial do ser. O que pode ser complementado pela teoria de Flusser (2007), ao dizer que a partir do caos o sujeito é capaz de hierarquizar um sistema de referências e, assim, estabelecer regras para coordená-lo. Ou seja, o corpo como mediador da informação – comunicador e interativo.
Dessa forma, o corpo, enquanto mecanismo de manipulação da informação atua na esfera da performance e toda e qualquer experiência corporal se torna capaz de modificar o equilíbrio sensorial do ser, alterando a forma em que este pensa e age. Além disso, esses padrões resultantes de práticas corporais emergentes implicam em transformações de espaços fundamentadas na individualidade do sujeito, a qual pode ser observada no ambiente a partir da repetibilidade de determinadas condutas espaciais. Nesse sentido, pode-se dizer que:
“Mexer-se não é mais deslocar-se de um ponto a outro da superfície terrestre, mas atravessar universos de problemas, mundos vividos, paisagens dos sentidos. Essas derivas nas texturas da humanidade podem recortar as trajetórias balizadas dos circuitos de comunicação e de transporte, mas as navegações transversais, heterogêneas dos novos nômades exploram outro espaço. Somos imigrantes da subjetividade.” (LÉVY, 2015, p. 14)
O sujeito, então, se apresenta como um ator ativo e participativo capaz de influenciar diferentes sistemas, indicando a dimensão de interação entre o sistema observado e o sistema observador. Assim, como na teoria da caixa-preta, amplamente difundida pelos ciberneticistas, observa-se que “contém um mecanismo presumido, que não pode ser visto e é o produto da interação entre o observador com o que-quer-que-seja” [2] (GLANVILLE, 2002, p. 5, tradução nossa). Ou seja, a interação diz respeito à experiência de apreensão gradual de impressões perceptuais, sensoriais e emotivas do observador com o sistema observado. Verifica-se assim que a corporeidade está embebida pelas experiências subjetivas do sujeito.
Nesta lógica, tomando-se o contexto da sindemia de obesidade, o corpo percorre por diversas tipologias ambientais, as quais influenciam o consumo alimentar e o desporto. E nesta lógica, a arquitetura se revela pelo espaço vivo e dinâmico, fundando-se na produção de lugares. Ou seja, deve-se ter em ente que a arquitetura não se faz de uma organização abstrata do espaço, mas da corporeidade decorrente de sua materialização e, assim, a disciplina “[…] aproxima do homem a paisagem habitada e permite-lhe habitar poeticamente, que é o objetivo último da arquitetura.” (NORBERG-SCHULZ, 2008, p. 471).
Dessa forma, infere-se que, no âmbito do ambiente físico, deve-se pensar em estratégias que influenciam o que está disponível e como está disponível. Pensa-se, então, em diretrizes que sejam capazes de avaliar a interferência nas escolhas alimentares e desportivas da população, estimulando o uso e aproveitamento (habitar) do espaço, ainda que de forma incipiente.
Portanto, as interações e desejos necessários para que o acesso a alimentos saudáveis e a pratica de esportes se torna atraente para a população devem ser englobados em uma nova vertente programática da produção espacial, favorecendo dinâmicas que promovam a saúde urbana. Para isso, deve-se pensar em investimentos para além de sistemas finalísticos de mapeamento, regulação e acesso (domínio político), mas entendendo que o sujeito é dotado de desejo e ação, programando novas dinâmicas para o sistema alimentar urbano e a prática de atividade física dentro do contexto urbano.
NOTAS
[1] “These human conditions of existence coalesce in experience through the formation of worlds.”(FROSH, 2019, p. 4)
[2] “The Black Box contains a presumed mechanism, which cannot be seen and is the product of the observer’s interaction with the whatever-it-is.” (GLANVILLE, 2002, p. 5)
REFERÊNCIAS
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3a ed. ed. São Paulo: Annablume, 2007.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Volume XXI (1927 – 1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67–153.
FROSH, Paul. The Poetics of Digital Media. 1a ed. Medford, MA: Polity Press, 2019.
GLANVILLE, Ranulph. Second order cybernetics. Encyclopaedia of Life Support Systems. Oxford: EoLSS Publishers, 2002. . Disponível em: <https://www.pangaro.com/glanville/Glanville-SECOND_ORDER_CYBERNETICS.pdf>.
NORBERG-SCHULZ, Christian. O pensamento de Heidegger sobre arquitetura. In: KATE NESBITT (Org.). . Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). 2a ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p. 461–474.
OLIVEIRA, B. S. De. O que é Arquitetura? In: DELRIO, V.; DUARTE, C. R.; RHEINGANTZ, P. A. (Org.). . Projeto do Lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.